Casa dos Padres, lugar assombra até hoje gerações em Sorocaba e Votorantim
Se você morou em Votorantim por volta dos anos 90 provavelmente já ouviu os mais velhos contarem que, no tempo em que ainda havia a escravidão, muitos negros escravizados foram maltratados pelos padres que viveram no local. Algumas histórias, daquelas que vão passando de geração em geração até ninguém mais saber de onde surgiram, dão conta que os escravos eram submetidos a castigos cruéis pelos sacerdotes. Os que tentavam fugir, reza o dito popular, eram colocados na escadaria do casarão e obrigados a rezar antes de serem mortos.
Há também a versão de que os padres, na verdade, ajudavam escravos a fugirem. Essa história é reforçada pela suposta existência de um túnel na propriedade. Em 2014, Edson Correa, tataraneto do escravo José Joaquim de Camargo, deu entrevista ao jornal Cruzeiro do Sul e citou relatos de seus antepassados. Segundo ele, os escravos chegavam a passar um tempo com os sacerdotes, mas quando o capitão do mato se aproximava, eles usavam esse túnel para a fuga. A saída, disse, dava do outro lado da avenida, perto do rio Sorocaba, onde na época existia uma cachoeira.
Mas com tantas informações passadas de boca em boca durante séculos, seria possível cravar o que é verdade e o que é mito sobre a Casa dos Padres? É difícil dizer. Durante um mês, o Trópico buscou, sem sucesso, documentos que tivessem registros do local. Uma instituição que poderia revelar um pouco sobre a história dos sacerdotes que passaram por lá é o Mosteiro do São Bento, no Centro de Sorocaba. Porém, o local está passando por reformas e a reportagem foi informada que os livros sobre os beneditinos da cidade estão encaixotados e, portanto, inacessíveis.
O historiador e escritor sorocabano Carlos Carvalho Cavalheiro, estudioso da história da cidade, disse saber pouco sobre a Casa dos Padres. Mas ele conta que, durante sua pesquisa sobre a escravidão negra em Sorocaba, que resultou na publicação de um livro, não encontrou indícios nem da exploração do trabalho escravo pelos monges e nem da inserção dos beneditinos no movimento abolicionista. “Não quero dizer com isso que o fato não ocorreu. O que afirmo é que não encontrei elementos, ainda, que corroborassem essas informações”, ressalta.
Outro conhecedor da história sorocabana, o jornalista e pesquisador Sérgio Coelho de Oliveira também afirma não ter conhecimento de nenhum fato historicamente relevante que tenha ocorrido na Chácara dos Padres. “Até onde sei, eles nem moravam lá”, fala. A respeito do túnel pelo qual supostamente ocorriam fugas de escravos, ele observa que a maioria das histórias envolvendo essas passagens são “aumentadas”. “Temos lendas sobre túneis no Mosteiro de São Bento e na Casa da Baronesa, mas a finalidade deles costumava ser só prática mesmo”, finaliza.
As memórias da confeiteira Dulce Noronha, 65 anos, trazem alguma luz à história dos padres. Moradora de Sorocaba, a idosa lembra que fazia visitas frequentes ao local quando tinha sete anos, já que os avós eram caseiros na chácara. Isso foi entre 1960 e 1961. “Meu avô cuidava da porteira que ficava onde hoje é o shopping [Iguatemi] Esplanada e também de uma plantação de uva. Já minha avó cultivava verduras para os padres”, lembra. Uma tia dela, que tinha menos de 20 anos na ocasião, também trabalhava no casarão como cozinheira dos sacerdotes.
Dona Dulce confirma que, apesar do nome pelo qual a construção ficou conhecida, os padres, mesmo, não moravam na chácara, ao menos nessa época. “Eles iam e voltavam, não passavam a noite lá. Eram homens mais velhos e usavam um carro preto”, destaca. Já os noviços (padres em formação) eram reclusos e viviam no convento, uma residência específica para eles. “Esses eu só sabia que moravam lá, mas eles não saíam da casa. No tempo que frequentei a chácara não cheguei a ver nenhum deles, nem mesmo ouvir as vozes. Acho que ficavam só rezando”, conta.
Nesse tempo o convento levava pintura amarela, lembra a confeiteira, mas as características internas são desconhecidas, já que ela nunca entrou no local. “Em frente ficava o casarão dos padres, onde havia a cozinha, que tinha azulejos brancos e um piso avermelhado. Tinha também uma escadaria na qual eu passava muito tempo brincando”. Outro local que ela lembra de frequentar na chácara é uma pedra que ficava na área do Campolim. “Levava minha boneca de pano e passava o tempo lá. Era uma época muito boa, de liberdade e contato com a natureza”, finaliza.
A área que foi ocupada pela Casa dos Padres pertenceu à Igreja Católica provavelmente desde a época da fundação de Sorocaba, por volta de 1660, quando o bandeirante Baltazar Fernandes doou parte da terra invadida aos monges beneditinos. Não há registros de quando exatamente os padres se instalaram nessa localidade, mas ela foi vendida nos anos 60. Os religiosos teriam se mudado do local nessa década, mas não se sabe qual o destino deles. O votorantinense Alison Santos pesquisou o tema com moradores antigos nos anos 2000 e conta que, segundo esses relatos, “os padres tinham origem italiana e foram embora após a Segunda Guerra Mundial”.
A Casa dos Padres foi comprada pela família Saker e foi nessa época que a autônoma Vera Lúcia de Oliveira Carriel, 53 anos, se mudou para o local com os pais e os irmãos. O pai dela, comenta, já trabalhava com o patriarca dos Saker, o senhor Zezo Miguel, e em 1967 passou a atuar como caseiro e jardineiro na chácara recém adquirida. Na ocasião, lembra, reformas tinham sido feitas no espaço, incluindo a construção de uma piscina e de uma varanda no casarão principal. Mas algumas estruturas originais foram mantidas, como uma igreja no porão dessa casa e uma adega.
Vera viveu no local dos três aos 23 anos, quando se casou, em 1987. “Apesar de tudo que falam, eu nunca vida nada de anormal lá. Na verdade, foi a melhor época da minha vida”, diz. O único lugar que assustava a antiga moradora era a adega da Casa dos Padres. “Tinha uma iluminação fraca e era feita de rochas, então dava um pouco de medo”. A estrutura também ficava no porão, contornando a igreja, que por sua vez era acessada por uma escada de madeira pela sala. “Era uma igreja completa mesmo, tinha bancos, altar e imagens de santos. Uma das filhas do senhor Zezo chegou a casar lá”, conta.
A entrada principal da chácara era às margens da rodovia Raposo Tavares (SP-270), ao lado do Shopping Panorâmico. As ruínas da porteira ainda existem e são o único vestígio que sobrou da fatídica construção. O estigma de mal-assombrado recaiu sobre o casarão que ficava logo após esse acesso, mas a propriedade chegou a ocupar uma área bem maior. Vera lembra que os limites da chácara passavam o próprio Panorâmico, a área do atual shopping Iguatemi Esplanada e chegavam até a divisa com a área onde hoje existe uma galeria, ao lado da Praça de Eventos de Votorantim.
“Onde foi construído o Esplanada havia plantação de milho. Na área do Panorâmico primeiro houve uma leiteria e criação de vacas, depois criação de bicho da seda e até produção de blocos de concreto”, afirma. De uma outra entrada pela estrada Sorocaba — Votorantim, se estendiam plantações e ainda residências ocupadas por funcionários da fazenda. “A casa onde eu morei com minha família ficava perto do casarão principal e tinha um pomar na frente. Lá também havia mais duas casas, uma que era usada pela sogra do senhor Zezo e outra pela empregada doméstica”, diz.
De acordo com Vera, uma porção de terra que ficava do outro lado da avenida, perto do cruzamento conhecido como Trevo da Morte, também fazia parte da chácara. Lá, na margem do rio Sorocaba, existia uma cachoeira onde as crianças costumavam brincar. A autônoma lembra que, com o tempo, os herdeiros foram vendendo a área aos poucos. Uma parte dela deu origem ao Panorâmico, que primeiro foi chamado de Shopping Regional. Por um tempo, esse empreendimento contou com uma estátua em tamanho real de São Bento, em homenagem aos antigos donos da área.
Apesar de toda a história por trás da Casa dos Padres, ela acabou abandonada e foi alvo de vândalos ao longo dos anos 90. Mas mesmo com as depredações, pichações e até um incêndio, a construção resistiu imponente no alto do morro, de onde podia ser vista de longe tanto pelo lado de Sorocaba quanto por Votorantim. A chácara seguiu inspirando a imaginação de gerações e foi um point da juventude da época, atraindo não só os curiosos, mas também aqueles que buscavam um lugar deserto para beber ou usar drogas — o que, para alguns, explica a suposta aparição de fantasmas.
A fama do local ser amaldiçoado também está relacionada ao fato de muitos empreendimentos no entorno não terem tido muito sucesso, embora a área seja considerada nobre. Muito se fala do Shopping Panorâmico, por exemplo, que nunca foi muito frequentado. Mas Vera Lúcia lembra que isso ocorre desde a época em que morou com a família na chácara, quando os herdeiros de Zezo Miguel tentaram alguns negócios que não deram certo. “O pessoal falava que era pela imagem do santo, que originalmente ficava atrás do casarão e foi movido por um dos filhos”, aponta.
Após a passagem da família Saker, o restante da área foi vendido para uma empresa de terraplanagem e incorporações e haveria um projeto de construção de prédios no local, que não saiu do papel até hoje. Todo o terreno no entorno sediou algum tipo de empreendimento — de um lado, por exemplo, há o shopping e do outro um condomínio de alto padrão. Mas curiosamente na parte que abrigou a Casa dos Padres, mesmo com sua demolição, atualmente só existe um matagal. E, na falta de uma explicação definitiva para isso, cabe a cada leitor decidir se é coincidência ou não.
Contada por : Sabrina Souza
Fonte : Mundo Sombrio
EDIÇÃO : WANDERSON L.
NARRAÇÃO: TRADUTOR ANTONIO ONLINE